O vencimento antecipado das dívidas e o pedido de recuperação judicial: um impasse à função social do produtor rural enquanto empresário

A Lei nº 11.101/2005 consagra, em seu artigo 47, o princípio da preservação da atividade produtiva como fundamento central do instituto da recuperação judicial. A finalidade precípua do instituto é assegurar a superação da crise econômico-financeira do agente produtivo – inclusive o produtor rural –, permitindo sua continuidade, a manutenção de empregos e o pagamento coordenado dos credores. Nesse contexto, qualquer medida que agrave indevidamente a situação do devedor rural ou inviabilize sua reestruturação econômica encontra-se em desconformidade com o regime especial previsto pela legislação falimentar brasileira.

É justamente sob essa ótica que se analisa a prática, amplamente disseminada pelas instituições financeiras, de incluir em seus instrumentos contratuais cláusulas que preveem o vencimento antecipado das obrigações em decorrência do simples ajuizamento do pedido de recuperação judicial. Trata-se de prática contratual comum em cédulas de crédito bancário, contratos de mútuo rural e demais instrumentos financeiros utilizados pelo agronegócio, em que se estabelece como evento de inadimplemento o pedido de recuperação judicial ou, ainda, o inadimplemento de quaisquer outras obrigações com terceiros – a chamada cláusula de cross-default (vencimento cruzado).

Em tese, estas disposições buscam proteger os interesses dos credores diante de sinais de deterioração patrimonial. No entanto, quando aplicadas de forma automática e generalizada no âmbito de uma recuperação judicial, mostram-se claramente abusivas e contrárias aos objetivos da legislação, especialmente quando afetam o produtor rural que busca, dentro da legalidade, reorganizar suas atividades e preservar sua capacidade produtiva.

Isso porque, a inclusão dessas cláusulas impõe efeitos práticos extremamente danosos ao produtor rural em crise. O vencimento antecipado artificialmente aumenta o passivo exigível, sem que tenha havido inadimplemento real, apenas em virtude do exercício de um direito legal: o pedido de recuperação judicial como instrumento lícito de reorganização financeira. Tal antecipação não só torna as dívidas vencidas de forma prematura, como também interrompe fluxos financeiros essenciais e compromete a viabilidade do processo de reestruturação.

A jurisprudência nacional tem reconhecido, com frequência crescente, que tais cláusulas violam a lógica do regime jurídico da recuperação judicial, especialmente quando sua aplicação inviabiliza a continuidade da atividade econômica rural, comprometendo safras, produção pecuária, manutenção de equipamentos e contratos com fornecedores.

Em emblemático julgado, o Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou a nulidade de cláusula contratual que previa o vencimento antecipado em razão exclusiva do ajuizamento de recuperação judicial, considerando tratar-se de matéria de ordem pública e cognoscível ex officio.

O acórdão foi expresso ao declarar que deve prevalecer a “declaração de nulidade de cláusula prevendo vencimento antecipado em caso de sobrevir pedido de recuperação judicial”[1]. A decisão destaca ainda a supremacia do interesse público subjacente ao regime da recuperação judicial, cuja finalidade não se resume à proteção do devedor, mas à preservação da atividade produtiva, da cadeia de fornecedores, da arrecadação fiscal e do mercado como um todo.

Além disso, a ativação dessas cláusulas com base apenas no ajuizamento da recuperação pode produzir efeitos inversos aos pretendidos pelos credores, ao impor ao produtor rural pressão financeira insustentável, comprometendo a execução do plano e frustrando o pagamento ordenado das obrigações, inclusive àqueles que acionaram essas disposições.

Tais condutas violam os princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato, consagrados no Código Civil e na legislação empresarial. Como ensina Marcelo Sacramone, “a preservação da empresa reflete os valores sobre os quais toda a Lei Falimentar é erigida”[2], e esse raciocínio se aplica com igual ou maior razão ao produtor rural, cuja atividade está diretamente ligada à segurança alimentar, à balança comercial e à estabilidade econômica nacional.

Nesse sentido, torna-se justo o afastamento da eficácia da cláusula, por representar um obstáculo injustificado à tramitação regular da recuperação judicial, uma vez que a simples existência da cláusula contratual não é suficiente para justificar sua aplicação durante o curso da recuperação, devendo ser observada a sua compatibilidade com o objetivo maior do processo: a reestruturação da empresa.

Ora, o ajuizamento da recuperação judicial não equivale a inadimplemento, mas representa o exercício legítimo de um direito previsto em lei. Submeter o produtor rural à exigência imediata de vencimento de obrigações regulares, apenas por acionar esse instrumento, equivale a puni-lo por buscar socorro legal. Essa penalidade indireta colide com a lógica do sistema jurídico contemporâneo, que harmoniza autonomia privada com a função social dos contratos e das atividades produtivas.

Nesse contexto, a doutrina é uníssona ao afirmar que a atuação da jurisprudência é essencial tanto para a efetivação quanto para o fortalecimento do princípio da preservação da atividade econômica, especialmente no âmbito do agronegócio, orientando a correta interpretação e a aplicação dos institutos da Lei nº 11.101/2005 pelo Poder Judiciário que, por sua vez, exerce papel de protagonista na consolidação de uma leitura compatível com os objetivos da recuperação judicial[3].

Torna-se, portanto, indispensável o reconhecimento da invalidade – ou ao menos da ineficácia – das cláusulas de vencimento antecipado fundadas exclusivamente no ajuizamento do pedido de recuperação judicial. O objetivo do legislador é assegurar a estabilidade mínima para que o produtor rural possa propor e executar seu plano de reestruturação, sem ver artificialmente ampliado seu passivo e obstaculizada sua permanência na atividade.

Essa interpretação não significa ignorar os direitos dos credores, mas sim garantir que todos, inclusive eles, possam obter o melhor resultado possível diante da situação de crise empresarial – o que se concretiza, na maioria das vezes, com a preservação da atividade e o cumprimento futuro das obrigações de forma ordenada.

Nesse cenário, deve-se afastar qualquer tentativa de resolver ou rescindir contratos com base exclusiva no ajuizamento da recuperação judicial, especialmente quando não demonstrada a efetiva incapacidade da empresa em cumprir com suas obrigações contratuais. A delicada situação financeira do agropecuarista, por si só, não justifica a rescisão automática. Pelo contrário, a preservação das relações contratuais estáveis e funcionais é fundamental para viabilizar a continuidade operacional da empresa e, por conseguinte, o cumprimento dos compromissos assumidos no plano aprovado.

Conclui-se, portanto, que reconhecer a invalidade dessas cláusulas, portanto, é assegurar não apenas os direitos da empresa em recuperação, mas também o interesse público envolvido na manutenção de uma atividade econômica viável, sustentável e juridicamente protegida.


[1] (TJ-SP – AI: 2196477-98.2019.8.26 .0000, Relator.: AZUMA NISHI, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Julgamento: 20/07/2020, Data de Publicação: 20/07/2020)

[2] Disponível em: Sacramone, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 5 ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024. Acesso em 18 jul. 2025.

[3] Disponível em: Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei 11.101/2005 / João Pedro Scalzilli, Luis Felipe Spinelli, Rodrigo Tellechea. – 4 ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Almedina, 2023. Acesso em 18 jul. 2025.

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