Eventos e catástrofes climáticas que assolam o Rio Grande Sul, os impactos da Resolução CMN Nº 5.220 e da Urgência da Securitização do Crédito Rural

Primeiramente, é público e notório que o Rio Grande do Sul enfrenta, novamente, severos eventos climáticos que já ocasionaram o decreto de emergência em diversos municípios. Tais eventos agravam ainda mais a situação dos produtores rurais gaúchos, os quais vêm enfrentando severos prejuízos desde as enchentes de abril e maio de 2024, além das estiagens de 2021, 2022 e 2023.

A intensificação desses eventos climáticos extremos tem causado sérios prejuízos aos produtores rurais gaúchos e aos municípios afetados, resultando em elevados níveis de endividamento dos produtores, ameaçando o abastecimento interno da região, a elevação dos preços dos produtos, o impacto no comércio local e na arrecadação de impostos, afetando toda a cadeia produtiva da região.

Para enfrentar essa crise, as casas legislativas propuseram diversos dispositivos legais para a criação de um mecanismo de securitização das dívidas agropecuárias, englobando todos os produtores rurais, inspirado em legislações anteriores (Leis nº 9.138/1995[i] e 10.437/2002[ii]).

Em resumo, tais iniciativas visam autorizar o Tesouro Nacional a emitir até R$ 60 bilhões em títulos, com prazos estendidos, juros diferenciados e bônus de adimplência. Além disso, as medidas preservam o acesso ao crédito rural, instituem um fundo garantidor para apoiar a securitização e criam uma linha de crédito especial do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), destinada ao fomento da atividade.

Paralelamente a essa iniciativa, o Conselho Monetário Nacional (CMN), por meio da Resolução CMN nº 5.220[iii], autorizou a prorrogação das dívidas bancárias dos produtores rurais gaúchos afetados pelos referidos eventos climáticos, todavia, vinculados aos créditos de custeio agrícola por até 3 (três) anos, por meio do Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor Rural (Pronamp), créditos reclassificados e demais produtores, vinculados à limitação de 8% do saldo das parcelas das operações de custeio. Ressalta-se que as dívidas renegociadas manterão os juros equalizados, ou seja, serão mantidas as condições de juros previstas nos contratos originais (alínea “a”, art. 12).

Independentemente de que o Projeto de Lei da Securitização e a Resolução CMN nº 5.220 constituam louváveis iniciativas para amparar os produtores rurais gaúchos, essas não englobarão todos os créditos rurais, haja vista que são vinculadas aos créditos subsidiados, não podendo, obviamente, o poder público interferir no crédito livre e/ou nas regras de crédito das instituições financeiras.

Resta incontroverso que o crédito rural subsidiado pelo Governo Federal não atende toda a demanda, sendo o produtor rural obrigado a realizar operações de crédito livre, mais onerosas e sem as benesses do MCR (Manual do Crédito Rural), as quais não poderão ser beneficiadas por tais iniciativas.

Nota-se que diversos produtores rurais, diante da impossibilidade de prorrogações e/ou de acesso ao crédito rural subsidiado pelo Governo, ficaram à mercê de diversas instituições financeiras, que majoraram os juros e/ou reduziram os benefícios dos programas abarcados pelo crédito rural, realizando operações financeiras que não conseguirão se adequar às regras para prorrogação das dívidas bancárias, por meio da Resolução CMN nº 5.220 e da Lei de Securitização.

Ainda, diversos créditos, atualmente denominados livres (ausentes de subsídio do Governo), foram originados de créditos subsidiados, os quais, diante de reiteradas práticas abusivas e ilegais de diversas instituições financeiras, alteraram sua origem (novação), em sua grande maioria para CCB (Cédula de Crédito Bancário), alavancando o crédito em detrimento do produtor rural.

Importante esclarecer que tal novação do crédito rural é reiteradamente discutida nos tribunais nacionais, formando um entendimento consolidado de que, comprovado o desvio de finalidade, é admissível a revisão da dívida desde a origem, além de outras benesses do MCR (Manual do Crédito Rural), indo de encontro à própria determinação expressa na CMN nº 5.220 (alínea “a”, art. 12). Vejamos[iv]:

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO REVISIONAL C/C TUTELA DE URGÊNCIA CAUTELAR. CÉDULAS RURAIS E DE CRÉDITO BANCÁRIO. APELAÇÕES. RENEGOCIAÇÃO DE DÍVIDA RURAL. NOVAÇÃO. INEXISTÊNCIA. REVISÃO DA DÍVIDA DESDE À ORIGEM. POSSIBILIDADE. DEVER DE OBSERVÂNCIA À LEGISLAÇÃO APLICÁVEL AO CRÉDITO RURAL. JUROS REMUNERATÓRIOS. LIMITAÇÃO EM 12% AO ANO. PLEITO DE LIMITAÇÃO DOS JUROS COM BASE NOS PERCENTUAIS ANTERIORMENTE PACTUADOS. IMPOSSIBILIDADE. MERA PRORROGAÇÃO DO DÉBITO. INOCORRÊNCIA. RENEGOCIAÇÃO DA DÍVIDA COM NOVOS ENCARGOS. SUCUMBÊNCIA. 1. Não produz efeito de novação a confissão/renegociação de dívida oriunda de cédula rural levada a efeito por meio de emissão de cédula de crédito bancário, se inobservada a legislação aplicável ao título de natureza rural, por desvio de finalidade, de modo que admissível a revisão da dívida desde a origem. 2. Os juros remuneratórios nas cédulas de crédito rural estão limitados a 12% ao ano, ressalvada autorização expressa do Conselho Monetário Nacional. 3. Inexiste o direito de aplicação dos encargos originalmente pactuados (cédulas rurais de origem do débito), em relação às confissões de dívida, representadas nas cédulas de crédito bancário, isso porque não se trata de mero alongamento, motivo pelo qual os juros remuneratórios devem ser limitados à taxa de 12% ao ano, percentual máximo permitido para o crédito de natureza rural, nos termos da legislação aplicável. 4. A sucumbência deve ser distribuída conforme a derrota sofrida e vitória auferida pelas partes, motivo pelo qual impõe-se a redistribuição das verbas de sucumbência. RECURSOS NÃO PROVIDOS. Processo: 0003294-05.2017.8.16.0047. Relator:  Hayton Lee Swain Filho. Órgão Julgador: 15ª Câmara Cível. Data Julgamento: 19/06/2019. (Sem grifo no original)

Nesse cenário, é importante ressaltar que os produtores rurais tenham conhecimento de seus direitos, diante das referidas práticas financeiras, devendo o Poder Público realizar um levantamento da real situação dos produtores e dos créditos em discussões, haja vista que as louváveis iniciativas não alcançarão os efeitos desejados, diante das famigeradas práticas de novação dos créditos rurais.

Ultrapassados tais aspectos, além da necessidade de um levantamento aprofundado dos reais fatores que levaram ao superendividamento do produtor gaúcho, cabe ao Governo Federal um real esforço e comprometimento para o soerguimento do agronegócio brasileiro, especialmente o produtor rural gaúcho, não podendo utilizar o artifício de responsabilidade fiscal para obstar qualquer tipo de iniciativa e aplicabilidade da Lei de Securitização.

Além da possibilidade ventilada na Lei de Securitização de crédito oriundo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Governo Federal poderia propor alteração da Lei 7.827/89, que regula os fundos constitucionais de financiamento do Norte (FNO), do Nordeste (FNE) e do Centro-Oeste (FCO), direcionando parte dos recursos para lastro de títulos emitidos por veículos securitizadores, bem como para incluir/fomentar o Estado do Rio Grande do Sul, o que, acredita-se, almejaria amplo e célere apoio institucional do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.

A título de exemplo, demonstrou-se que o Governo Federal, quando tem interesse na solução de problemas econômico-sociais e/ou interesses políticos, imprime rápidos procedimentos constitucionais, como no caso da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 1236, distribuída junto ao Supremo Tribunal Federal (STF)[v] pela Advocacia-Geral da União, assinada juntamente com o Presidente da República, visando restituir os pensionistas/aposentados em decorrência do escândalo da fraude do INSS.

Na referida demanda, além de visar o ressarcimento dos pensionistas/aposentados, o Governo Federal pleiteou autorização do STF para abrir crédito extraordinário, defendendo que a despesa fosse excluída dos limites de gasto previstos na legislação fiscal para os anos de 2025/26.

Nesse sentido, denota-se que o Governo Federal atua de forma célere e com toda a máquina estatal para obstar ou mitigar possíveis riscos à imagem político-partidária, demonstrando que atua de formas distintas em situações similares, referentes ao regramento de responsabilidade fiscal, evidenciando um descompromisso com o agronegócio brasileiro.

O momento é extremamente crítico, não se tratando de uma questão meramente financeira, mas sim de saúde pública, diante dos vastos levantamentos de graves doenças ocupacionais e suicídios que assolam os produtores rurais gaúchos[vi][vii][viii], em sua devastadora maioria, ocasionados pelo endividamento. O Poder Público deve atuar de forma rápida e enérgica, posto que a demora e/ou inércia nas reivindicações dos produtores rurais gaúchos poderão ocasionar sérios e irreparáveis prejuízos à coletividade.

Por fim, é importante advertir sobre a necessidade de celeridade na aprovação da Lei de Securitização, independentemente do parlamentar e/ou partido político responsável pelos projetos de lei. As casas legislativas, com apoio institucional do Governo Federal, devem se unir para a aprovação da Lei de Securitização, não podendo um assunto extremamente penoso e sutil ser ignorado ou utilizado como disputa e/ou palanque político, posto que é fundamental para o soerguimento do agronegócio gaúcho e a salvaguarda da dignidade da pessoa humana.

Referências:


[i] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9138.htm

[ii] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10437.htm

[iii]https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Resolu%C3%A7%C3%A3o%20CMN&numero=5220

[iv] https://portal.tjpr.jus.br/jurisprudencia/j/4100000009431621/Ac%C3%B3rd%C3%A3o-0003294-05.2017.8.16.0047

[v] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=7287062

[vi] https://www.comprerural.com/alarmante-suicidios-entre-produtores-rurais-sao-o-dobro-da-media-nacional/

[vii] https://www.ihu.unisinos.br/650433-endividamento-intoxicacao-e-cultura-sao-decisivos-em-suicidios-de-fumicultores-entrevista-especial-com-tatiana-dimov

[viii] https://www.scielosp.org/article/ress/2020.v29n2/e2019512/

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